Continuando o polémico tema apontado num post anterior pelo Ricardo, é preciso frisar algumas coisas.
Primeiro, a importância mediática que foi dada a este estudo parece um pouco desproporcionada. O artigo de Ana Gerschenfeld no Público on-line é uma cativante narrativa do quão excitante pode ser o dia-a-dia dum investigador (suspiro - se ao menos fosse verdade), mas apela mais ao coração que à razão. Em ciência os resultados espectaculares tendem ou a ser posteriormente falsificados ou, a serem genuínos, precisam sempre de mais estudos para serem confirmados. Infelizmente, a comunicação social na sua busca pelo “entretenimento primeiro, informação depois”, não compreende muito bem isto.
O próprio Svante Paabo, um dos pioneiros do estudo de DNA antigo e um dos mais competentes investigadores no meio, iniciou a sua carreira com uma comunicação publicada no mesmo jornal onde este estudo do putativo hominineo de Denisova foi publicado – Nature. Ele relata a recuperação de 3.400 bp (pares de base) da sequência de DNA duma múmia egípcia. Foi naturalmente um resultado fabuloso que viria inclusive a abrir as portas da imaginação de Michael Crichton para escrever o seu Jurassic Park. Hoje sabe-se que o DNA antigo encontra-se sempre bastante degradado e que fragmentos com mais de aproximadamente 500 bp resultam de contaminações com DNA moderno. Além disso, o ambiente quente e com variações térmicas do Egipto dificulta bastante a sobrevivência de DNA (este é um pormenor importante sobre outro trabalho muito duvidoso mas tremendamente mediatizado: a recuperação de DNA da múmia de Tutankhamon). O que Paabo tinha publicado no mais prestigiado jornal cientifico era… uma contaminação, provavelmente o seu próprio DNA.
“Escândalos” semelhantes assombraram o mundo do DNA antigo pelo que muitos investigadores adoptaram uma atitude mais humilde. No final dos anos 90 convencionaram-se nove critérios para garantir a verificabilidade e autenticidade dos estudos de DNA antigo.
Um deles, que curiosamente neste estudo de Krause, Paabo, e colaboradores parece não ter sido feito (ou pelo menos não aparece explicitado no artigo), é a replicação por um grupo independente e num local diferente. Se o trabalho de extracção de DNA e subsequente análise foi feito apenas no Max Planck Institute em Leipzig, tal não é boa prática. Talvez a unicidade da amostra (uma pequena falange) o justifique, mas quando um resultado tão bombástico como uma nova espécie de hominíneo é apresentado as regras devem ser seguidas.
Esse é outro detalhe interessante: uma falange foi o material usado para extrair DNA. Apesar das condições excepcionais da Sibéria para a preservação de biomoléculas e o pressuposto teórico de que o DNA humano pode sobreviver post-mortem em qualquer tecido ósseo, é algo anómalo que um pedaço tão pequeno de osso seja usado como única evidência genética (toma lá esta, CSI!!!).
À primeira vista, os resultados deste trabalho parecem fiáveis e as conclusões sustentáveis. Não parece nada de anormal a existência de espécies de hominíneos que ainda desconhecemos, e que terão certamente migrado de África em diferentes momentos. Apenas um antropocentrismo bacoco pode levar à ideia de que somos uma espécie excepcional e infinitamente rara (pessoas religiosas e malta das humanidades comecem a acender-me a fogueira). Mas antes de se partir para uma excitante revisão de todos os livros de evolução humana é preciso esperar por mais (e melhores) estudos.
segunda-feira, 29 de março de 2010
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Pois eu cá não consigo deixar de ficar surpreendido sempre que uma notícia deste tipo é divulgada. Neste caso em particular, ainda mais surpreendido fico por um novo hominínio ser detectado através do mtDNA. Deve ser caso único. Até agora, todas as descobertas têm sido feitas a partir do registo fóssil. Algo que me deixa também espantado é que se as condições do sítio são suficientemente adequadas à preservação de material genético, como é possível que o registo fóssil seja tão limitado que tenha impedido a detecção deste hominíneo anteriormente? Deve ser uma questão de tempo até se encontrarem restos humanos mais completos.
ResponderEliminarOs autores referem a existência de dentes e estes são normalmente bons para estabelecer distinções, principalmente se o antepassado comum mais recente tiver o milhão de anos avançado pela equipa do Krause. É provável que haja diferenças ao nível dos componentes que constituem os dentes (esmalte, dentina, cementum). É mais que provável também que esses materiais venham a ser revisitados proximamente, caso não o tenham sido já. Creio que novas descobertas serão publicadas em breve.
Em relação à saída de África há 1 milhão de anos, que caso seja confirmada se vem juntar às saídas de África do erectus há 1,9 Ma e do homem moderno há 50 mil anos, não me surpreende muito. Creio que outras ainda terão ocorrido e viremos a confirmá-lo no futuro. Uma das consequências desta descoberta é que a teoria do "Out of Africa 2" (referente ao Homem moderno) passará agora a ser chamada "Out of Africa 3". E não sei se ficará por aqui! :-)
Uma das coisas que gostaria de saber, e creio que os autores não mencionaram (fiz uma leitura na diagonal, apenas), é em quantas posições o mtDNA deste indivíduo difere do mtDNA do Neandertal (se possível um neandertal da mesma zona geográfica)?