segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Espaço como categoria cultural

Em comunicações e aulas costumo apresentar a seguinte citação (tradução do autor):

“A consideração do espaço como uma realidade unicamente de ordem física e ambiental desmorona-se perante a evidência de que o espaço é sobretudo uma categoria cultural, um conceito específico de cada sociedade ou, inclusive, de cada grupo de poder ou resistência dentro de uma determinada sociedade.
Ramil Rego et al. (2005): 111

Entre alguns (em especial não ligados directamente à História ou Arqueologia) poderá parecer algo de muito sapiente. Cá entre nós é um dado adquirido. De qualquer forma, esta frase parece sintetizar bem a ideia.

Referência:
Ramil Rego, P.; Rodríguez Guitián, M.; Rubinos Román, M.; Ferreiro da Costa, J.; Hinojo Sánchez, B.; Blanco López, J.; Sinde Vazquez, M.; Gómez-Orellana, L.; Díaz Varela, R.; Martínez Sánchez, S.; Muñoz Sobrino, C. (2005). La expresión territorial de la biodiversidad. Paisajes y hábitats. Recursos Rurais (2005) Serie Cursos 2: 109-128.
Disponível on-line aqui.


5 comentários:

  1. Hum, não é de todo a minha especialidade. A frase faz algum sentido, mas como é que se passa dum conceito tão vago e abrangente como "espaço" para uma abordagem "focauliana" de poder e resistência ao poder? E algo que me confunde em alguma "arqueologia da paisagem" é como é que se consegue passar de registo arqueológico (ou mesmo etnográfico) para afirmações sobre o aspecto cultural de espaço, ou paisagem, natureza, etc?

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  2. A Arqueologia da Paisagem de facto é uma área um pouco nebulosa. Grande parte dos estudos realizados em Portugal são, na verdade, estudos de territórios e da dispersão de sítios arqueológicos numa determinada região. São estudos puramente arqueológicos. A Arqueologia Ambiental tem abordagens um pouco diferentes e, infelizmente, normalmente de costas voltadas à Arqueologia da Paisagem.

    A frase que coloquei nesta mensagem é da autoria de um palinólogo e parece-me ser mais linear do que aparenta - é por isso que gosto dela. Trata-se de uma constatação de quem trabalha em paleoecologia já há muitos anos: o espaço (seja ele urbano ou rural) tem muito pouco de natural e tem, na verdade, uma origem marcadamente antrópica. Ao longo do tempo foi moldado em função das necessidades e vontades do Homem - necessidades e vontades que se alteraram consoante a realidade social, cultural e política das comunidades humanas que agiam sobre a paisagem. O exemplo romano é interessante: a estruturação do espaço (articulação entre rural-urbano) obedecia a objectivos políticos e condicionamentos sociais evidentes e rompia com o modelo anterior, também ele bem identificado com as comunidades humanas que habitavam o território (vejam a mudança que constitui a Proto-história face à Pré-história recente do ponto de vista da paisagem na maioria da sequências palinológicas e sedimentares do Noroeste Ibérico).

    As políticas medievais e modernas para a floresta portuguesa, assim como as políticas do Estado Novo para a florestação dos baldios são exemplos de como o espaço reflecte por vezes a vontade de determinados "grupos de poder", mais do que a vontade de uma sociedade. A proliferação de pinhais nos baldios foi feita à revelia de muitas (não todas) as comunidades locais.

    Quanto aos "grupos de resistência", basta pensar na forma como o espaço era estruturado e vivido em diversas aldeias comunitárias nas zonas raianas portuguesas, à revelia do que eram as indicações estatais, em pleno século XX.

    É assim que eu entendo esta frase, como uma leitura linear e sintética da co-evolução da paisagem e das sociedades humanas. Esta leitura ganha mais relevância se entendermos qual a publicação em que é feita: uma revista de índole agrária/biológica. Se calhar ficaríamos surpreendidos com a quantidade de pessoas que ainda acham que uma paisagem de média montanha, dominada por estados sucessionais baixos (por exemplo, um urzal ou um giestal) é uma paisagem natural sem influência antrópica...

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  3. Aaahhhh, isto agora faz muito mais sentido. Nao leves a mal a minha ignorancia, mas estou escaldado do ambiente mais "artes e humanidades" do Reino Unido onde a arqueologia da paisagem e* quase sempre sino*nimo de fenomenologia, de passear pelo campo e "sentir" aquilo que as pessoas no passado sentiriam, a "soundscape", a metafisica da meteorologia, etc. O Tim Ingold, famosissimo antropologo, tem assim umas tiradas que parecem retiradas da twilight zone.

    Do pouco que contacto por aqui e* mais a arqueologia ambiental que procura ecofactos e intervencao humana na paisagem e, claro, perceber as diferencas de intervencao nos diferentes periodos pre-historicos e historicos).

    E* giro perceber as diferentes abordagens que se podem fazer comecando exactamente do mesmo ponto de partida.

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  4. Confesso que nunca fui muito adepto disso de "sentir" a paisagem. Aceito - e sempre aceitei - a subjectividade do sujeito histórico e sei que é quase inútil lutar contra isso. Gadamer tinha razão. No entanto, isso não pode servir de desculpa para partir para abordagens demasiado pessoais.

    As ciências históricas de facto não têm de almejar atingir o mesmo nível de raciocínio (e prova) que as ciências naturais pois lida com a imprevisibilidade humana e com materiais de estudo que frequentemente não permitem a repetibilidade de experiências. No entanto, não creio que a aproximação à filosofia que Gadamer preconiza seja o tipo de investigação que eu queira fazer. Aliás, nas áreas onde as ciências históricas se cruzam com as ciências naturais, os investigadores não devem fazer tabula rasa dos métodos das ciências com que se cruzam. Isto é, quando um historiador ou arqueólogo entra nos campos da ecologia não deve esquecer que esta área científica rege-se por critérios distintos que garantem o seu estatuto de ciência.

    Mas isto é a minha opinião.

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  5. Ah, teoria, e* tao bom discutir teoria. Espero que haja mais oportunidade para isso aqui no blog.

    Eu concordo que aplicar os me*todos das ciencias naturais (onde a experimentacao, a replicacao e previsao sao conceitos chave) a*s ciencias sociais (onde o objecto de estudo e* demasiado complexo, o observador e* ele pro*prio parte do objecto estudado, e a experimentacao directa e* quase sempre impossivel) nao faz muito sentido. E nas "ciencias sociais" incluo as "ciencias historicas" como a arqueologia e a historia.

    Mas precisamente devido a* subjectividade inerente ao estudo do passado humano e a dificuldade de o fazer, a investigacao em arqueologia devia reger-se por principios fortes de racionalismo e objectividade. A consequencia seria uma reducao forte na quantidade de informacao a retirar do registo arqueologico mas um aumento na qualidade da informacao.

    Por exemplo, se um arqueologo achar um vaso decorado pode ter uma abordagem racional e simplesmente descrever o objecto, as suas decoracoes e formas, talvez fazer uma analise dos materiais e residuos e inferir algo sobre o meio de producao e uso do objecto. Chato, mas seguro. Facto evidente: aquele povo produzia vasos de ceramica, usavam-no para armazenar, sei la, azeite ou leite, e pronto.

    Se o arqueologo quiser tentar uma abordagem semiotica a*s decoracoes, inferir estruturas cognitivas a partir dos desenhos, aplicar abordagens estruturalistas ou pos-estruturalistas, etc... bem, vai obviamente retirar mais informacao do pote, mas essa informacao e* francamente subjectiva e de fraca qualidade.

    Acho que o mesmo dilema se aplica a*s diferentes abordagens quanto a*s paisagens historicas. Uma coisa e* descrever o uso do espaco (existem dados concretos do registo arqueolgico, palinologico, etc) outra e* inferir um significado do espaco com base em abordagens hermeneuticas ou fenomenologicas.

    Algo que me da* comichao nas abordagens "po*s" (pos-modernas, pos-estrutralistas, pos-processualistas, etc) e* a impossibilidade das conclusoes serem falsificabilizadas, e como tal a sua validacao epistemologica e* du*bia... embora isto seja, obviamente, discutivel.

    Mas esta tambem e* apenas a minha opiniao.

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