A historiografia é fértil em mitos. Num texto já com 10 anos Pablo Ramil Rego e Fernández Rodríguez listam as espécies vegetais que, por terem nomes latinos, tradicionalmente são tidas como cultivos adoptados pelas populações da Idade do Ferro e/ou da Época romana na Galiza e comparam com os dados obtidos em jazidas arqueológicas (dados de arqueobotânica) e nas fontes clássicas. Eis o resultado (quadro adaptado de Ramil Rego e Fernández Rodríguez, 1999):
Como é evidente no quadro, muitas espécies apontadas pela historiografia não se encontram mencionadas nas fontes clássicas para a região e não surgem no registo arqueológico/arqueobotânico. Como se deduziu então o seu uso pelas paleocomunidades humanas?
Notem que a presença do castanheiro neste quadro não indica que esta espécie não existia na região - dados polínicos apontam claramente para o carácter autóctone do castanheiro - unicamente indica que devemos ter muitas cautelas ao avaliar o papel desta espécie para a subsistência das comunidades das épocas em causa.
Também em Portugal não foram até agora recolhidas castanhas em sítios arqueológicos, ainda que existam evidências (antracológicas) para o uso da madeira desta espécie. No que respeita à videira, existem vestígios carpológicos no Norte de Portugal, acompanhando diversas evidências arqueológicas que permitem distinguir a região entre o Douro e o Minho das regiões mais a Norte na Proto-história e época romana.
De qualquer modo, o quadro aqui apresentado deve fazer-nos pensar na forma como é construído o conhecimento arqueológico/histórico e como a origem de determinadas ideias que temos como indiscutíveis poderá ser nebulosa. Em suma: temos de ter o cuidado de averiguar a origem das ideias que lemos na literatura científica e devemos fazê-lo de forma crítica.
Referência:
Ramil Rego, P.; Fernández Rodriguez, C. (1999) - La explotacíon de los recursos alimenticios en el Noroeste Ibérico, in García Quintela, M., Mitología y Mitos de la Hispania Prerromana (III), Akal, p. 296-319.
A historiografia é um género narrativo, que vai construindo a sua «ficção» sobre os «dados» recolhidos em vários domínios da pesquisa «científica», desde a arquivística às mais próximas das «ciências naturais» aplicadas.
ResponderEliminarTodavia, o processo de transferência narrativa inicia-se logo na interpretação, em sede especializada, dos dados recolhidos.
A matéria é actualmente, do meu ponto de vista, o nó axial de uma reflexão epistemológica consistente. As operações narrativas vão-se acumulando em sucessão estratigráfica a partir do mero acto de recolha e registo.
Penso ser altura de dar algm impulso a uma reflexão epistemológica consistente, talvez aproveitando a dinâmica que VOJ tem desenvolvido.
"As operações narrativas vão-se acumulando em sucessão estratigráfica a partir do mero acto de recolha e registo."
ResponderEliminarEis uma frase que sintetiza muito bem esta questão. Interessa não perder a origem dos dados pois é a única forma de averiguar a sua consistência, de forma a não construirmos narrativas nas nuvens da imaginação de determinados investigadores.
João, tens toda a pertinência em colocar estas questões, pois considero também que o principal problema da investigação em Portugal são os conceitos pré-definidos com que grande maioria dos investigadores parte para o terreno. Ou seja, por vezes há a intenção de se ver o que se quer ao contrário do que deveria ser, através dos indícios que se vão recolhendo ao longo da investigação. Esse caso que apresentaste parece ser paradigmático entre outros no nosso país. Tal como referes, o conhecimento vai-se construindo em camadas que se vão complementando e só assim, poderemos fundamentar as nossas interpretações.
ResponderEliminarJorge Pinho
Caro João Tereso.
ResponderEliminarEu pretendia atingir ainda estratos mais profundos da narrativa. Seja, mo mero acto de recolha já está presente a narrativa, suscitada pelos condicionalismos que interferem no próprio acto de observar, seleccionar o relevante para o registo, etc... Um registo fotográfico, parecendo um procedimento documental de relação imediata com o objecto, é já um procedimento narrativo.
Gostaria, todavia e também, de deixar patente que, em minha opinião, esta constatação não pode imobilizar o fluir do processo de aquisição de informação. Basta que estejamos conscientes de que tudas as manipulações, intelectuais e materiais, sobre o objecto, acrescentam-lhe algo, ou transferem-no para o interior do discurso. E munirmo-nos de critérios sucessivamente mais críticos e operacionais, que nos permitam distinguir o que existiu do que passa a existir após a nossa intervenção.
Sem dúvida, Caro Amigo, está a colocar uma questão de primeira linha no âmbito mais actual da epistemologia.
Não creio que esteja em causa o fluir da investigação arqueológica, tal como, normalmente, o acto de pensar não nos impede de fazer, ao mesmo tempo, muitas outras coisas básicas no dia-a-dia. Antes pelo contrário, até nos ajuda a ter consciência das implicações dos nossos actos. Mas compreendo o seu alerta: afinal de contas, quase todos nós já embatemos contra algo na rua por irmos absortos nos nossos pensamentos...
ResponderEliminarDeixo duas histórias:
1) Segundo Godard, Porthos, o mais estúpido dos mosqueteiros, morreu nos subterrâneos de Paris. Estando uma bomba prestes a explodir ele fugiu a correr. No entanto, olhou para os seus próprios pés e parou. Parou e ficou a olhar os seus pés e a questionar como é que colocando um pé à frente do outro conseguia andar. A bomba explodiu e ele morreu.
2) Tive eu próprio uma discussão com outro arqueólogo há muito tempo atrás por uma questão simples: a Unidade Estratigráfica ou Camada [0]. A atribuição do número 0 a uma camada ou U.E. nunca me pareceu correcto, em especial depois do argumento que me apresentavam. Diziam-me que era o número 0 porque era anterior à intervenção arqueológica. O número 0 era o que surgia na primeira fotografia. Na minha opinião isto nunca fez sentido por dois motivos: a fotografia era tirada depois do mato roçado, o que era, já por si, uma intervenção no âmbito da escavação arqueológica, pelo que designar o plano como anterior a qualquer intervenção seria logo erróneo; mas o mais importante, quanto a mim, é a noção de que o simples acto de tirar uma fotografia, com ou sem o mato roçado, é já por si uma forma de intervir e de criar uma perspectiva sobre uma realidade. Seguindo esta ideia, a utilização da Camada 0, segundo o argumento que me foi exposto, não fazia sentido.
Excelente. Estamos então no ponto de consenso que nos permite prosseguir na reflexão e aprofundamento da questão com serenidade, sem ficarmos a congeminar que pé havemos de mover primeiro, o direito ou o esquerdo. Apreciei os seus exemplos.
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