O Homem de Neandertal é provavelmente, o nosso parente extinto mais famoso. Tal como nós, foi produto de uma evolução no sentido da encefalização, do bipedismo proficiente e da competência na produção de ferramentas. Porém, o seu estatuto é hoje também o produto de uma evolução ao nível da postura científica e esteve durante muito tempo acorrentado a preconceitos que, há mais de cem anos atrás resultaram na atribuição de uma natureza brutal, bárbara e quase simiesca a este hominídeo. Esta representação manteve-se na imagética popular durante muito tempo, e para alguns, estas características ainda lhe estão conotadas. Porém, a produção científica actual permitiu-nos distanciar dessas primeiras representações, e as últimas décadas têm assistido a uma crescente “humanização” deste nosso mais próximo conterrâneo evolutivo. Provavelmente, um Neandertal com um corte de cabelo “maneirinho” e enfarpelado com as vestimentas de um qualquer “prêt-a-porter” não suscitaria mais “virares-de-cabeça” do que os punks malabaristas da Rua de Santa Catarina. Seja qual for a postura, os Neandertais têm estimulado a nossa imaginação desde que a famosa calote craniana do Vale do Neander na Alemanha foi desenterrada em 1856.
Apesar de ter ocupado e explorado uma área extensíssima que compreende grande parte do território europeu e algumas das regiões mais ocidentais da Ásia, este tão bem-sucedido hominídeo acabou, como tantos outros antes dele, por definhar e deixar menos frondosa a árvore referente à linhagem humana. A sua sobrevivência resume-se hoje a uma pequena participação no nosso património genético actual, cuja expressão fenotípica aparenta ser de tal forma diminuta que apenas a sequenciação do ADN nuclear foi capaz de a confirmar sem margem para dúvidas. A Península Ibérica tem sido apontada como local do último reduto Neandertal, inferência feita essencialmente a partir da cultura material que a arqueologia tem apresentado ao Mundo. Porém, por comparação com os achados humanos descobertos em Espanha, o nosso próprio pecúlio tem sido reduzido e algo desapontante. Resume-se a um punhado de dentes e ossos desarticulados, sendo que os mais recentes achados têm a Gruta da Oliveira (Torres Novas) como proveniência. Dada a escassez de restos humanos encontrados neste rectângulo à beira-mar plantado, é legítimo questionar a que razão ou razões se deve este cenário e o que podemos fazer para o alterar. Questionámos alguns dos especialistas nacionais acerca desta questão e apresentamos aqui as suas perspectivas em discurso directo.
Para João Zilhão – Professor em Arqueologia Paleolítica na Universidade de Bristol – a causa para este cenário é clara. Encontrei restos humanos em todas as jazidas que escavei, incluindo as do Paleolítico Médio. Se há menos em Portugal do que noutros lados a razão é simples: é que em Portugal se escava muitíssimo menos. Não há menos restos, há menos escavações.
Esta visão é em parte partilhada pelo Director do Museu Nacional de Arqueologia, Luís Raposo. Poderá ser a pouca investigação (escavação) moderna, especialmente em grutas, já que em sítios de ar livre é mais raro encontrar fósseis humanos, aqui ou noutros países. Porém, Raposo acredita que esse não é o único factor explicativo. A verdade é que não foi ainda encontrada em Portugal nenhuma gruta com uma ampla ocupação do Paleolítico Médio. Pelo contrário, ocorre que em quase todas as grutas onde se registaram presenças do Paleolítico Médio estas são muito discretas, quase vestigiais, mesmo quando nos níveis superiores existem densas ocupações do Paleolítico Superior. A única excepção poderá ser a Gruta Nova da Columbeira, que possui uma ocupação intensa do Paleolítico Médio e uma ausência de vestígios do Paleolítico Superior, devida talvez à circunstância de a cavidade ser já infrequentável pelo homem nessa fase. Foi aqui que se recolheu o mais antigo resto neandertalense descoberto em Portugal, mas apenas um fragmento de dente, quando a fauna é abundante. Terão os métodos de escavação usados deixado passar outros vestígios? Não sei.
Luís Raposo tende a considerar que este padrão de menor ocupação das grutas durante o Paleolítico Médio nesta Finisterra portuguesa é real e já o procurou explicar através de padrões de ocupação do território [cf., por exemplo, RAPOSO, L. (1995) - “Ambientes, territorios y subsistencia en el Paleolítico Medio de Portugal”, Complutum, nº. 6, Madrid, pp. 57-77].
Também as condições climáticas gerais poderiam ir no mesmo sentido. A ideia do homem de Neandertal como um “bruto troglodita” é totalmente errónea. Nem eram assim desprovidos de capacidades intelectuais, nem tinham gosto especial por habitar em cavernas. Ora, numa região em que o clima nunca tivesse atingido os rigores glaciários da Europa mais setentrional, é fácil pensar que os bandos de Neandertais ocupariam preferencialmente os vales dos rios e os maciços periféricos a baixa altitude, vivendo principalmente em acampamentos de ar livre e sendo por isso mais “invisíveis” hoje no registo arqueológico. Admito também que, ainda por cima, fossem menos, quer dizer que houvesse uma menor densidade populacional, mas quanto a isso apenas podemos por agora ter “impressões”.
Nuno Bicho, professor na Universidade do Algarve afirma que a questão é interessante e muito relevante no estudo da Pré-história portuguesa e, infelizmente, aplica-se também a outros momentos da Pré-história Antiga, como é o caso do Paleolítico Inferior. Na sua perspectiva, parece haver um conjunto alargado de factores limitadores do número e qualidade de sítios arqueológicos do Paleolítico Médio em Portugal. Provavelmente, há quatro factores principais: o reduzido número de investigadores em Paleolítico e especificamente em Paleolítico Médio; o deficiente treino e ensino em Paleolítico e em análise de indústria líticas; a falta de trabalho de prospecção dedicada ao Paleolítico; e o contexto da geologia e da geomorfologia.
De facto, no âmbito académico há apenas, neste momento três docentes universitários (nas Universidades do Minho, Lisboa e Algarve) que se especializaram e que fazem investigação continuada nesse período. O resultado prático é que o número de alunos que se interessam por Paleolítico é reduzido nos cursos de licenciatura de Arqueologia e, naturalmente, por razões demográficas, diminui sensivelmente conforme se avança no grau académico. Apesar de tudo, temos um conjunto de recém-doutorados e de doutorandos apreciável em Paleolítico, atendendo ao número total de alunos de Arqueologia. Mas também é verdade que o número de alunos que trabalha em Paleolítico Médio é reduzido – tomando a Universidade do Algarve como exemplo (talvez como referência?), existem neste momento 12 doutorandos, dos quais 8 trabalham em Paleolítico (ainda que nem todos tenham esse período como foco da sua tese) e desses 8 não há nenhum a trabalhar em Paleolítico Médio. Do conjunto de investigadores da Universidade do Algarve, eu incluído, há cerca de uma dúzia de pessoas a trabalhar em Paleolítico, e apenas duas trabalham directamente, ainda que não exclusivamente, com Paleolítico Médio.
Para Nuno Bicho, o ensino de matérias relacionadas com o Paleolítico, bem como de especialidades fundamentais no seu estudo como é a geoarqueologia, a arqueometria e a zooarqueologia, é claramente deficiente na maior parte das universidade portuguesas, principalmente no caso das licenciaturas. Unidades curriculares (para aqueles que estão afastados dos estudos superiores há algum tempo, este termo significa “disciplinas”) dedicadas a análise de materiais líticos são raríssimas em Portugal e, claro, se um aluno não souber reconhecer artefactos líticos talhados, muito dificilmente irá encontrar sítios arqueológicos da Pré-história antiga.
O terceiro factor é o do tópico da investigação – raramente em Portugal aparecem projectos de investigação dedicados inteiramente à prospecção arqueológica e, claro, menos ainda dedicados ao Paleolítico. O resultado é que os poucos sítios Paleolíticos que se encontram hoje são revelados acidentalmente ou através de estudos de impacto. Como um grande número de arqueólogos não tem a preparação suficiente para reconhecer artefactos líticos paleolíticos, estes sítios não são encontrados.
Contudo, parece que apesar de todos estes factores condicionantes, deveria haver mais sítios arqueológicos. A verdade é que nos últimos 20 anos, o número de sítios arqueológicos do Paleolítico Superior verdadeiramente importante cresceu exponencialmente (Cabeço do Porto Marinho, Lagar Velho, Vale Boi, Picareiro, Coelhos, Anecrial), o que não aconteceu relativamente ao Paleolítico Médio – de facto, com a excepção dos trabalhos de João Zilhão no Complexo Arqueológico do Almonda, especialmente na Gruta da Oliveira e, mais recentemente, o de Jonathan Haws em Mira Nascente (ainda que com outra dimensão), não houve outros sítios novos de Paleolítico Médio verdadeiramente relevantes. Esta falta de sítios do Paleolítico Médio deve-se muito provavelmente às condições geológicas das jazidas com esta cronologia. É possível que se encontrem soterradas por baixo de coluviões mais recentes ou em terraços fluviais e marinhos de grande potência que dificultam a sua detecção. É também claro que em alguns pontos do país, nomeadamente o Algarve, se deu, provavelmente durante o Holocénico antigo, a erosão completa de terraços e outros depósitos do Pleistocénico Superior. E assim, perderam-se inúmeros sítios arqueológicos datados do Paleolítico Médio.
Em relação aos factores geológicos, seria talvez interessante fazer um levantamento completo e sistemático das condições de jazida de todos os sítios arqueológicos do Paleolítico Médio de forma a, e com base nesse estudo, desenvolver padrões preditivos de localização de jazidas Moustierenses. Este trabalho foi feito para o Paleolítico em geral para o vale do Sado por uma equipa canadiana, com base nos dados de um projecto meu de prospecção paleolítica para o Algarve. Naturalmente, foram encontrados um conjunto razoável de sítios arqueológicos, nomeadamente alguns do Paleolítico Médio e que, espera-se, sejam aceites para publicação em breve.
Aqui ficaram os relatos de três especialistas nacionais, a quem muito agradecemos a sua colaboração. Do seu discurso resulta a ideia que ainda muito há a fazer para colmatar algumas das lacunas que o nosso registo arqueológico apresenta em relação a achados humanos. Porém, também fica a ideia que esse registo irá ser gradualmente enriquecido por novas descobertas à medida que o investimento em investigação, recursos materiais e recursos humanos for aumentando. Aqui estaremos para dar conta desses novos achados.
segunda-feira, 29 de novembro de 2010
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