quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Os primeiros agricultores sem evidências directas de agricultura

É constrangedor o ponto em que se encontra o “estado da arte” de diversas temáticas arqueológicas em Portugal e várias regiões de Espanha. Um bom exemplo diz respeito ao início das práticas agrícolas - vejam o excelente artigo de Zapata et al (2004).

Em pesquisas acerca do NW peninsular encontro unicamente dois sítios do Neolítico antigo com sementes de espécies domésticas: Buraco da Pala (com vários cereais) e Morcigueira (com Brassica/Sinapis). Infelizmente, em ambas as jazidas as datações de radiocarbono não foram obtidas sobre sementes, mas sim sobre carvões, apesar de as sementes serem abundantes. Isto constitui um problema pois o que poderia ser uma evidência directa de agricultura passa a ser indirecta e susceptível de ser questionada – a antiguidade das sementes do Buraco da Pala foi questionada por Monteiro-Rodrigues et al. (2008); a Morcigueira é claramente um sítio problemático do ponto de vista estratigráfico (Ramil-Rego et al. 1990).

Resta-nos os abundantes dados das sequências palinológicas obtidas na Galiza. Estes apontam para uma tardia presença de pólen de cereal – meados do V milénio cal BC – à semelhança do que acontece na Cantábria. No entanto, tendo em conta que o pólen de cereal é pesado podemos questionar qual a probabilidade deste surgir em sequências polínicas quando estas são, na sua maioria, obtidas em locais de montanha.

Muito resta por investigar nesta área. Por ora algo é evidente: é urgente escavar e fazer recolhas sistemáticas de sedimentos para flutuação.

Referências:

Monteiro-Rodrigues, S., I. Figueiral, López-Sáez, J. (2008). Indicadores paleoambientais e estratégias de subsistência no sítio pré-histórico do Prazo (Freixo de Numão – Vila Nova de Foz Côa – Norte de Portugal). III Congresso de Arqueologia de Trás-os-Montes, Alto Douro e Beira Interior – Debates no Vale do Côa.

Ramil-Rego, P., M. Aira Rodriguez, et al. (1990). "Donnes paleobotaniques sur la presence de graines de Brassicaceae au N.O. de la Peninsule Iberique." Revue de Paléobiologie 9(2): 263-272.

Zapata, L., L. Peña-Chocarro, et al. (2004). "Early Neolithic Agriculture in the Iberian Peninsula." Journal of World Prehistory 18(4): 283-325.

3 comentários:

  1. Pois, sabes que flutuações, ecofactos, arqueobotânica e afins ainda são, esperemos que cada vez menos, coisas quase insignificantes na arqueologia Portuguesa. O que se quer é cerâmica, artefactos decorados com símbolos, e... pá, sentir a paisagem... entrar na mente das pessoas... ver a agência dos objectos...

    Eu li a monografia do Buraco-da-Pala e´, enfim, a acreditar naquelas datações a agricultura aparece em Trás-os-Montes ao mesmo tempo que nos Balcãs... curioso, no minimo.

    Também a ideia com que fiquei do que li (pouco, confesso) sobre Neolítico Transmontano publicado nos anos 80 e 90 foi a de que aquilo é escrito em "pos-modernês". Em vez de escreverem "datações de radiocarbono sugerem o aparecimento da agricultura na região de Trás-os-Montes no V milénio AC" surgiria algo como "as práticas agrícolas primevas no território que hoje reconhecemos como Português pautam-se por uma evidente precocidade nas regiões compreendidas entre o planalto Beirão e a orografia acidentada da Serra do Marão, onde as datações obtidas mediante análise química de compostos orgânicos balizam temporalmente uma presença, ainda que fugaz e porventura momentânea, e em suma maneira pioneira na sua concepção cosmológica, da modificação da paisagem para fins de aproveitamento económico mediante a prática de agricultura de sequeiro no V milénio AC". É um contraste enorme com os artigos sobre o Neolítico na Estremadura, Alentejo e Algarve que parecem muito mais claros e objectivos.

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  2. Esperemos que algo mude para que as recolhas de sedimento se tornem mais recorrentes e estudos de arqueobotânica e faunas - em especial de microfaunas - se tornem mais frequentes. Quando tal acontecer, todo um novo mundo de dados surgirá.

    O problema do discurso é, efectivamente, um caso bicudo. O discurso científico deve, acima de tudo, ser claro e directo. A preocupação com o significado das palavras, com os conceitos aplicados, deve existir mas não a um ponto que prejudique o propósito da investigação - voltamos assim a uma discussão já realizada aqui no blogue.

    Será que o tipo de discurso exemplificado no comentário acima não resulta de uma necessidade de protagonismo do respectivo autor...

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  3. =) sem dúvida... como todo o "pos-modernês", o discurso tem como objectivo mostrar mais o mérito do autor do que das ideias expostas.

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