sábado, 20 de fevereiro de 2010

Arqueologia e Genómica, parte I - o genoma que veio do frio

A arqueologia colabora com a genética (ou mais actualmente, a genómica) humana em três campos: no estudo de DNA de populações modernas, no estudo de DNA recuperado de vestígios arqueológicos… e no sensacionalismo mediático.

No passado mês foram publicados três artigos que ilustram bem estes cenários.

O artigo publicado por Rasmussen et. al [1] na semana passada reporta a primeira sequenciação do genoma dum ser humano antigo (neste caso um Paleo-Esquimó da cultura Saqqaq). Um esclarecimento. O mundo do DNA antigo é um de aguerridas rivalidades (porventura nada de estranho para o leitor arqueólogo). Mas, dum modo geral, a comunidade cientifica neste campo reconhece os grupos que pautam a sua investigação por uma ética rigorosa e por uma abertura total à partilha, verificação e, se possível, falsificação dos resultados obtidos. O grupo que Eske Willerslev lidera goza da reputação de ser, actualmente, um dos melhores em DNA antigo.

Nos últimos seis ou sete anos assistiu-se na biologia molecular à revolução da segunda geração de tecnologias de sequenciação [2,3,4] (Roche-454; Illumina’s SOLEXA; ABI SOLiD;). Para ter uma ideia do avanço que estas tecnologias constituem, o Projecto Genoma Humano iniciou-se em 1990 e demorou treze anos a produzir o primeiro esboço da sequencia (a ordem de A, C, T e Gs ao longo da molécula de DNA) do genoma completo dum ser humano. O Projecto 1000 Genomas, iniciado em 2008, espera em dois anos ter a informação do genoma de 1000 indivíduos. Irá produzir nestes dois anos 60 vezes mais informação sobre sequencias de DNA humano do que toda aquela que foi produzida nos últimos 25 anos!

from Medini D. et al. 2008. Microbiology in the post-genomic era. Nature Reviews Microbiology 6: 419-430.


Com base nestas tecnologias, o grupo de Rasmussen conseguiu sequenciar 20 vezes (a precisão e exactidão duma sequencia de DNA exige replicação) 79% do genoma dum indivíduo morto há 4.000 anos (baptizado pelos investigadores com o nome de “Inuk”) e encontrado na Gronelândia. Como os autores escrevem, este trabalho é um teste directo ao potencial da genómica com base em DNA antigo para o conhecimento sobre culturas extintas. As condições excepcionais de preservação oferecidas pelo permafrost árctico, e o tecido escolhido para recolher DNA (cabelo) contribuíram para o sucesso da empresa. Em contraste com os treze anos da sequenciação do genoma humano, a sequenciação de “Inuk” demorou dois meses e meio.

Este trabalho permitiu obter informação arqueologicamente relevante sobre este individuo em particular e sobre a sua cultura. Para além da datação por radiocarbono, a análise dos isótopos de carbono e nitrogénio revelou uma dieta rica em recursos marinhos. No genoma, os autores estudaram SNPs - leia-se “snips” – abreviatura de single nucleotide polymorphism, no genoma de “Inuk”. Tratam-se de variações numa sequência de DNA (comparando com outra sequência) em que existe uma diferença num único nucleótido (p.ex. ACTTGTCA e ACTCGTCA). Em “Inuk” foram identificados 353.151 destas variações. Comparando cada uma destas variações com as que ocorrem (ou não) na mesma região de DNA em populações actuais de Inuit, Nativos Norte-Americanos e povos do Norte Asiático, os autores sugerem que os antecessores de Inuk (e porventura da cultura Saqqaq) teriam provindo do leste da Sibéria.

from Lambert D and Huynen L. 2010. Face of the past reconstructed. Nature 463: 757-762.

Estes SNPs podem ocorrer em qualquer sítio ao longo dos 3 biliões de pares de bases que constituem o genoma humano. Quando estes SNPs ocorrem em partes do DNA que codificam proteínas (genes) podem alterar as características físicas do individuo que possua aquela variante (alelo) em particular. Com base no que ainda pouco se sabe sobre o efeito de SNPs em certos genes, os autores determinaram que este individuo, para além de ser do sexo masculino, era do grupo sanguíneo A+, tinha olhos castanhos, cabelo escuro e grosso, propensão para calvície, pele relativamente escura, dentes em forma de pá, cera de ouvido seca, e o seu metabolismo e massa corporal estavam adaptados a climas frios.

Convém frisar que os autores deste estudo descrevem os métodos inovadores usados para se certificarem que a informação obtida não resulta de contaminações com DNA moderno (sempre presente nestes estudos, facto que neste caso não só não foi ignorado como foi inclusivamente quantificado em 0,8%). E que as análises foram independentemente replicadas na Dinamarca, na Califórnia e no Reino Unido. Voltarei a isto quando falar da mediatizada análise genética de Tutankhamon.

A titulo de curiosidade, uma das autoras do artigo da Nature e investigadora no grupo de Willerslev, é a Portuguesa Paula Campos.

[1] – Rasmussen M et al. 2010. Ancient human genome sequence of an extinct Palaeo-Eskimo. Nature 463: 757-762.
[2]- Medini D. et al. 2008. Microbiology in the post-genomic era. Nature Reviews Microbiology 6: 419-430.
[3] – Mardis E. 2008. The impact of next-generation sequencing technology on genetics. Trends in Genetics 24: 133-141.
[4] – Schuster S. 2008. Next generation sequencing transform’s today’s biology. Nature Methods 5:16-18.

4 comentários:

  1. Caro Hugo,

    Obrigado por esta explicação simples e articulada. Li no público que a amostra de cabelo utilizada nesta sequenciação foi encontrada pelo Willerslev na cave do Museu de História Natural dinamarquês e que aí se encontrava há 20 anos, por isso uma contaminação de 0,8% é surpreendentemente baixa! Sabes se este valor é uma estimativa estatística ou um valor empiricamente observado?

    Acerca da contaminação de DNA, como é possível fazer uma discriminação segura entre material genético moderno e antigo dado que ambos se tratam de Homo sapiens sapiens? Sei que o povo do Inuk se extinguiu, mas a variação dos SNP é suficiente para estabelecer uma diferenciação?

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  2. Oias:

    A contaminação de 0.8% foi empiricamente observada. Pelo que percebi eles incluiram adaptadores para amplificar certos alelos que são carcaterísticos de populações Europeias (identificados pelo Human Genome Diversity Project). Ou seja, as sequências contaminantes seriam detectadas na própria análise.

    Mesmo assim, eles verificaram as sequências todas (tem certamente super computadores e uma boa equipa de bioinformáticos para programar algoritmos de verificação) para detectar SNPs e outras sequências típicas de Europeus e que, pelo menos no presente, estão ausentes nos individuos Inuit e Siberianos testados até agora.

    Dependendo do nivel de análise existem formas (alelos) de certos marcadores genéticos que são exclusivos de certas espécies (que permitem distinguir Homo sapiens, Chipanzé e Neandertal) e outras que permitem distinção intra-especifica. Há alelos caracteristicos (ou extremamente frequentes) de certas regiões ou grupos étnicos (usados em genética populacional), outros que são exclusivos de grupos familiares (usados em testes de paternidade), e outros ainda exclusivos de individuos(usados em ciência forense). Os SNPs são particularmente úteis para estas distinções, por isso são muito usados hoje em dia.

    Também devem ter procurado sequências dos próprios investigadores no genoma do Inuk a ver se encontravam positivos, isso é um protocolo universal.

    Só 0.8% das sequências todas do Inuk encaixavam com as tais sequências de DNA tipicamente Europeias.

    Claro que eles dizem que a amostra só foi manipulada por individuos definidos etnicamente como Europeus ou descendentes de Europeus, e o individuo analisado era claramente, pelo contexto, não-europeu. Isso facilita muito.

    O método não é obviamente perfeito e baseia-se numa série de suposições e os autores frisam que os tais 0.8% são uma estimativa. Mas é uma forma elegante de verificar contaminações que, salvo erro, já tinha sido aplicada com o genoma do Neandertal.

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  3. Então os 0,8% referem-se a sequências possivelmente contaminadas e não a 0,8% de sequências confirmadamente contaminadas?

    Seja como for, o valor parece-me demasiado baixo. Se não estou enganado, os estudos de DNA antigo popularizaram-se apenas a partir do trabalho de Rebeca Cann e a sua equipa que deu suporte à teoria do Out of Africa em 1987. O cabelo do Inuk foi recolhido por volta dessa altura. Achas que já havia uma preocupação com a contaminação de amostras na comunidade arqueológica no princípio dos anos 90? Creio que seria de esperar maior contaminação.

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  4. Bem, se a amostra e* dum individuo que pertenceria a populacoes do Artico ou do Nordeste Asiatico, e todos os individuos que o manipularam (arqueologos, pessoal de museu, etc) eram de uma etnia diferente, entao podem-se controlar, mais ou menos, essas contaminacoes.

    Pelo que percebi o cabelo foi recolhido nos anos 80 mas estava enfiado na cave dum museu. Alem disso o cabelo e* aparentemente um tecido bom para DNA antigo, e parece ter menos contaminacoes do que os ossos (que sao muito porosos, e normalmente lavados ou muito manipulados).

    Acho que este trabalho mostra uma abordagem muito realista em relacao a isto das contaminacoes. Mas ha-de sempre ser um problema.

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