A arqueologia colabora com a genética (ou mais actualmente, a genómica) humana em três campos: no estudo de DNA de populações modernas, no estudo de DNA recuperado de vestígios arqueológicos… e no sensacionalismo mediático.
No passado mês foram publicados três artigos que ilustram bem estes cenários.
O artigo publicado por Rasmussen et. al
[1] na semana passada reporta a primeira sequenciação do genoma dum ser humano antigo (neste caso um Paleo-Esquimó da cultura Saqqaq). Um esclarecimento. O mundo do DNA antigo é um de aguerridas rivalidades (porventura nada de estranho para o leitor arqueólogo). Mas, dum modo geral, a comunidade cientifica neste campo reconhece os grupos que pautam a sua investigação por uma ética rigorosa e por uma abertura total à partilha, verificação e, se possível, falsificação dos resultados obtidos. O grupo que Eske Willerslev lidera goza da reputação de ser, actualmente, um dos melhores em DNA antigo.
Nos últimos seis ou sete anos assistiu-se na biologia molecular à revolução da segunda geração de tecnologias de sequenciação
[2,3,4] (Roche-454; Illumina’s SOLEXA; ABI SOLiD;). Para ter uma ideia do avanço que estas tecnologias constituem, o Projecto Genoma Humano iniciou-se em 1990 e demorou treze anos a produzir o primeiro esboço da sequencia (a ordem de A, C, T e Gs ao longo da molécula de DNA) do genoma completo dum ser humano. O
Projecto 1000 Genomas, iniciado em 2008, espera em dois anos ter a informação do genoma de 1000 indivíduos. Irá produzir nestes dois anos 60 vezes mais informação sobre sequencias de DNA humano do que toda aquela que foi produzida nos últimos 25 anos!
from Medini D. et al. 2008. Microbiology in the post-genomic era. Nature Reviews Microbiology 6: 419-430.
Com base nestas tecnologias, o grupo de Rasmussen conseguiu sequenciar 20 vezes (a precisão e exactidão duma sequencia de DNA exige replicação) 79% do genoma dum indivíduo morto há 4.000 anos (baptizado pelos investigadores com o nome de “Inuk”) e encontrado na Gronelândia. Como os autores escrevem, este trabalho é um teste directo ao potencial da genómica com base em DNA antigo para o conhecimento sobre culturas extintas. As condições excepcionais de preservação oferecidas pelo
permafrost árctico, e o tecido escolhido para recolher DNA (cabelo) contribuíram para o sucesso da empresa. Em contraste com os treze anos da sequenciação do genoma humano, a sequenciação de “Inuk” demorou dois meses e meio.
Este trabalho permitiu obter informação arqueologicamente relevante sobre este individuo em particular e sobre a sua cultura. Para além da datação por radiocarbono, a análise dos isótopos de carbono e nitrogénio revelou uma dieta rica em recursos marinhos. No genoma, os autores estudaram SNPs - leia-se “snips” – abreviatura de
single nucleotide polymorphism, no genoma de “Inuk”. Tratam-se de variações numa sequência de DNA (comparando com outra sequência) em que existe uma diferença num único nucleótido (p.ex. ACT
TGTCA e ACT
CGTCA). Em “Inuk” foram identificados 353.151 destas variações. Comparando cada uma destas variações com as que ocorrem (ou não) na mesma região de DNA em populações actuais de Inuit, Nativos Norte-Americanos e povos do Norte Asiático, os autores sugerem que os antecessores de Inuk (e porventura da cultura Saqqaq) teriam provindo do leste da Sibéria.
from Lambert D and Huynen L. 2010. Face of the past reconstructed. Nature 463: 757-762.
Estes SNPs podem ocorrer em qualquer sítio ao longo dos 3 biliões de pares de bases que constituem o genoma humano. Quando estes SNPs ocorrem em partes do DNA que codificam proteínas (genes) podem alterar as características físicas do individuo que possua aquela variante (alelo) em particular. Com base no que ainda pouco se sabe sobre o efeito de SNPs em certos genes, os autores determinaram que este individuo, para além de ser do sexo masculino, era do grupo sanguíneo A+, tinha olhos castanhos, cabelo escuro e grosso, propensão para calvície, pele relativamente escura, dentes em forma de pá, cera de ouvido seca, e o seu metabolismo e massa corporal estavam adaptados a climas frios.
Convém frisar que os autores deste estudo descrevem os métodos inovadores usados para se certificarem que a informação obtida não resulta de contaminações com DNA moderno (sempre presente nestes estudos, facto que neste caso não só não foi ignorado como foi inclusivamente quantificado em 0,8%). E que as análises foram independentemente replicadas na Dinamarca, na Califórnia e no Reino Unido. Voltarei a isto quando falar da mediatizada análise genética de Tutankhamon.
A titulo de curiosidade, uma das autoras do artigo da Nature e investigadora no grupo de Willerslev, é a Portuguesa
Paula Campos.
[1] – Rasmussen M et al. 2010. Ancient human genome sequence of an extinct Palaeo-Eskimo. Nature 463: 757-762.
[2]- Medini D. et al. 2008. Microbiology in the post-genomic era. Nature Reviews Microbiology 6: 419-430.
[3] – Mardis E. 2008. The impact of next-generation sequencing technology on genetics. Trends in Genetics 24: 133-141.
[4] – Schuster S. 2008. Next generation sequencing transform’s today’s biology. Nature Methods 5:16-18.